Extremos
 
COLUNISTA GUILHERME CAVALLARI
 
Reflexões sobre aventura na feira de aventura
 
Texto: Guilherme Cavallari
18 de outubro de 2016 - 14:55
 

Guilherme Cavallari no stad da SPOT Brasil, na ASF 2016, | Foto: Adilson Moralez
 
  Guilherme Cavallari

Acabei de voltar de mais uma edição da Adventure Sports Fair, a maior feira de esportes e turismo de aventura da América Latina. Como participei de todas as dezesseis edições da feira até hoje, desde 1999, acho que posso me considerar “assíduo” e até “fiel”. Só tenho medo de também ser visto como um tipo de “mobiliário”, algo que gera o tipo de diálogo:

— O que você viu na feira, Zé?

— Ah, vi o de sempre… Estandes, crachás, modelos com excesso de maquiagem, seguranças mal-humorados… E, claro, o Guilherme Cavallari estava lá!

A feira é, sem dúvida, o maior evento do calendário de esportes outdoor do Brasil, mas isso não quer dizer muito. O calendário é medíocre. Na verdade, eu sempre achei a feira um transatlântico navegando num mar de canoas, algo grande demais para o cenário nacional. E continuo com a mesma impressão.

Nos saudosos primeiros anos, lá na Bienal do Parque do Ibirapuera, a ASF era referência, ponto de encontro e laboratório para experiências futuras. A corrida de aventura estava começando no país e mountain bikers, como eu, tiveram a oportunidade de conhecer escaladores em rocha, caiaquistas, canoístas, velejadores, espeleólogos e afins. Irmãos da vida ao ar livre distantes e separados pela desinformação.

O resultado óbvio foi que eu também virei escalador, caiaquista e afins e levei muito marmanjo rachado do sol de alto-mar e de mãos calejadas pelo atrito com granito pra pedalar em trilhas comigo. A ASF mostrou a todos nós que era possível ser profissional em nossas áreas de sonho, ganhar a vida com nossos hobbies. A feira mostrou que aquilo que nós chamávamos simplesmente de “aventura” também era um “mercado”. E essa é uma dívida com o evento que vou carregar para o resto da vida.

Mas como sempre acontece, a fila anda. Com o passar do tempo, os mercados dentro do mercado aventura — os “segmentos”, como os técnicos em marketing gostam de chamar — começaram a buscar espaço e identidade próprias. A união debaixo de um único guarda-chuva talvez tenha ficado apertada e houve dispersão, com e sem atritos. O mercado bicicleta, meu mundo particular, foi um dos primeiros e procurar seu próprio lugar ao sol, rompeu com a ASF e montou suas próprias feiras e eventos. A maioria morta já no nascimento.

Nas primeiras ASF era comum encontrar guias ainda sujos de barro pelos corredores da feira, expedicionários prontos para zarpar ou recém-retornados de alguma aventura, idealistas cheios de planos na cabeça e cópias de algum projeto mirabolante debaixo do braço, sonhadores de olhos brilhantes hipnotizados por um canto remoto do planeta. Esse povo era igual arroz no chão de igreja depois do casamento — difícil caminhar pela feira e não tropeçar neles.

Hoje, isso tudo é história do passado.

Acho que pra falar de aventura ou do “mundo da aventura” é preciso antes tentar definir “o que é aventura”. Uma tarefa sempre muito difícil. Primeiro, porque como não se trata de ciência, as opiniões acabam valendo mais do que os conceitos. Mas vou arriscar e colocar aqui a minha opinião.

A aventura, no título da Adventure Sports Fair, para mim, é contato com a natureza. Quanto mais estreito, próximo e íntimo o contato, portanto, maior o potencial de aventura na experiência. E o inverso também é verdadeiro. Assim, se o barato do aventureiro é, por exemplo, o mar, existe mais aventura no surfe do que no jet ski, mais aventura no caiaque do que na lancha, mais aventura num barco a vela do que num cruzeiro marítimo. Se a curtição é trilha, nada se equipara ao trekking, seguido de perto pelo mountain bike. E assim por diante.

Mas existe uma questão filosófica pouco discutida e talvez até meio esquecida quando falamos de aventura. Por que nos aventuramos? Por que buscamos a aventura? E para essa questão tenho uma resposta clara, que serve de bússola para minha vida nesse segmento, que tento entender e ajudo a definir.

Eu pratico atividades de aventura porque me sinto parte da natureza. Eu busco na aventura o contato com minha natureza interior através da natureza exterior. Assim, se meu contato com o meio natural se dá comigo no papel do intruso, do observador passivo ou do crítico, a possibilidade de identificação pessoal e intimidade será muito reduzida. Quantos mais “filtros” houver entre mim e a natureza exterior, mais difícil será o contato com minha natureza interior.

Ficou confuso? Deixa eu tentar explicar melhor…

Se percorro um determinado percurso a pé, tenho tempo, proximidade e oportunidade de observar cada detalhe no caminho com mais atenção. Relevo, clima, flora, fauna, população local, cultura, língua e sabores — para citar alguns exemplos — estarão todos mais disponíveis porque eu estarei mais disponível. Se percorro o mesmo trajeto de bicicleta tudo passa mais rápido e diminuem as chances de contato, embora ainda permaneçam altas porque eu estarei me movimentando com a força do meu corpo. O deslocamento se dá de forma mais “orgânica”, usando um tempo da moda. Se faço o mesmo roteiro de carro, moto ou ônibus, acompanhado de outra pessoa ou de um grupo, ouvindo música ou falando ao celular, filmando ou fazendo selfies, lotado de bagagem ou carregando minha casa nos ombros, todos esses elementos comigo servirão de “filtros” limitando minha experiência. Em outras palavras, aventura é uma atividade onde a qualidade da experiência é mais importante que a quantidade. O “como” fazemos é mais importante do que “o que” fazemos.

Por isso é comum ouvir comentários como: “viajar de moto ou carro não é aventura”. Eu discordo. Acho que seria mais correto dizer: “existe menos aventura numa viagem de moto do que numa viagem de bicicleta ou a pé”. E isso acontece por existir menos “filtros”.

Outro “filtro” comum é a figura do guia, a pessoa com mais experiência que coordena, organiza e garante mais segurança e comodidade à atividade de aventura. Acho engraçado ouvir de alguns aventureiros a frase: “eu não sou turista”, com se isso fosse depreciativo. Pessoalmente, acho que somos todos turistas em qualquer lugar que não seja nossa casa. Mas entendo o preconceito. O “turista” é aquele que não se expõe, aquele que firma um compromisso com o conforto e passa pela experiência de aventura sem responsabilidade ou grande envolvimento. O turista é o “passageiro”, alguém que paga para ser servido, às vezes alimentando a ilusão de ser “condutor”.

Na ASF 2016 senti a pressão do excesso de “filtros”. Havia mais carros e motos do que bicicletas, mais pneus do que botas, mais aparelhos eletrônicos do que olhos brilhantes, mais possibilidades de aquisições do que de vivências. Só que aventura é uma experiência e não um objeto na prateleira, é algo que sentimos e não compramos, é um processo e não um destino ou um fim.

Como diz um provérbio budista: “na montanha, existem infinitos caminhos que levam ao cume”, mas se subimos a montanha pelas mãos de um guia, na fila organizada por um evento comercial, com o objetivo de conquistarmos não o topo mas para galgarmos degraus na escada da fama pessoal, não tenho dúvida alguma que a montanha foi reduzida a uma simples colina.


Guilherme Cavallari,
autor de 18 livros sobre esportes e turismo de aventura, entre eles o recém-lançado “Transpatagônia, Pumas Não Comem Ciclistas”, tenta levar uma vida simples nas montanhas da Mantiqueira. Também colabora como colunista do Extremos desde 2010.

 
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