Extremos
 
COLUNISTA GUILHERME CAVALLARI
 
Desconstruindo ícones da aventura
 
texto e foto: Guilherme Cavallari
2 de fevereiro de 2012 - 16:40
 

ÍCONE DA AVENTURA - Por dez anos tive um Land Rover Defender 110. Era “o carro dos meus sonhos”. Foto: Guilherme Cavallari
 
  Guilherme Cavallari

Ansiedade, vergonha, hábito e alívio.
É muito fácil viver a vida correndo atrás de desejos. Mais fácil ainda é confundir esses desejos com sonhos, expressões de felicidade, missão, meta, objetivos ou conquistas. Desde muito jovens aprendemos que é preciso “ser alguém na vida”, ocupar um espaço na sociedade, ser responsável e trabalhador. O problema é quando esses valores se confundem com objetos, de qualquer tamanho. Pior ainda é quando confundimos pessoas com objetos e vice-versa.

Meus vizinhos, por exemplo, têm três carros para cinco moradores. Logo serão quatro carros porque a filha mais nova já está em idade de dirigir e, não duvido, vai ganhar ou comprar um carro também. Vivo no mesmo endereço há 15 anos e não consigo lembrar de um único domingo em que eles não passaram lavando carros. Isso é... Todos os poucos domingos que passei em casa. Só me lembro de ter lavado (e depois encerado) meu ex-carro uma vez em todo esse tempo – quando decidi vendê-lo.

Por dez anos tive um Land Rover Defender 110. Era “o carro dos meus sonhos”.

Minha fixação com esse carro começou, eu acho, com a série de TV Daktari – uma leoa vesga (Elza), um casal de veterinários e um Land Rover na savana africana – mas havia também alguma ligação torta com os muitos livros do Julio Verne que li na infância, os acampamentos que fiz com minha mãe e irmãs nas sedes do Camping Club do Brasil e, mais tarde, as aventuras adolescentes com amigos da ACM. Parece que sempre gostei de aventura e o Land Rover parecia representar esse espírito como poucos objetos.

“Olhem para mim, gosto de aventura, tenho compromisso com esse conceito e a prova disso está no carro que dirijo!”

Na verdade, meu cérebro bem treinado aceitou alegremente cair na armadilha de associar um conceito a um objeto. Hoje percebo isso claramente. Aventura para mim rapidamente passou a ser ter um Land Rover, como se esse objeto completasse a imagem que eu queria para mim mesmo, como se fosse um manifesto público da minha opção ideológica. Era como se eu dissesse: “olhem para mim, gosto de aventura, tenho compromisso com esse conceito e a prova disso está no carro que dirijo!”. Já que somos constantemente julgados e catalogados, eu queria que pelo menos o rótulo fosse minimamente correto.

Trabalhei bastante, economizei muito, fiz dívidas e, depois de alguns anos de muita ansiedade, consegui comprar o carro que sempre desejei.

O normal nessa situação é se sentir orgulhoso, recompensado, bem-sucedido, não? Pois qual não foi minha surpresa por perceber que imediatamente depois de ter o carro, eu me sentia profundamente envergonhado... Isso durou mais de um ano, com mais ou menos intensidade. Eu sentia vergonha de ter um carro que, mesmo usado e de quatro anos de idade, valia mais do que as casas e apartamentos de muita que gente que eu conhecia. Vergonha de saber que brasileiros próximos de mim não tinham dinheiro para viver com um mínimo de dignidade e eu dirigia um carro importado e cobiçado, como se ignorasse ou caçoasse das necessidades alheias. Vergonha de parecer mais rico do que eu realmente era. Vergonha de comprometer uma grande parcela do meu orçamento para manter esse carro. Vergonha por perceber que eu havia caído conscientemente na armadilha do consumismo e que agora estava amarrado a um desejo alimentado por tanto tempo.

Passado um tempo, talvez um ano e meio, caí no hábito de me ver dirigindo um Land Rover. Gastava às vezes 50% de todo dinheiro que ganhava no mês para manter o carro, mas me sentia tão associado ao carro que ficava difícil conseguir me enxergar sem ele. Para piorar, na época eu já era um profissional do segmento aventura e o carro passou a servir para mim como uma “prova do meu sucesso”, um atestado da minha competência profissional. De uma forma esdrúxula, aceitei a ilusão de que o carro era uma extensão de mim mesmo, algo como o estilo de roupa que decidimos vestir.

Obviamente esse Land Rover Defender 110 foi muito útil durante todo esse tempo. Com ele passei dois meses na Patagônia chilena e mapeei um dos meus livros, o Guia de Trilhas Carretera Austral. Eu o usei intensamente em inúmeras viagens, explorações, mapeamentos, cursos, feiras, etc. Posso dizer, sem o menor pudor, que o carro se pagou integralmente e enquanto investimento foi bastante eficiente e lucrativo. Mas isso não justifica a confusão conceitual. Ter o carro não afetou de fato quem eu realmente sou. Carros (ou qualquer outro objeto) simplesmente não têm esse potencial.

Então precisei de mais dinheiro para construir um segundo andar em casa e vendi o carro para comprar tijolos e cimento. Foi muito menos doloroso do que imaginei. Vendi o Land Rover Defender 110 por 90% do valor pago dez anos antes! Ótimo negócio, dirá qualquer economista. Mas o lucro maior foi o alívio imediato que senti. Literalmente, foi como um peso monstruoso tirado dos meus ombros... Eu não pagava seguro há anos, porque simplesmente não compensava; tinha medo de estacionar em qualquer lugar; gastava até 20% do valor do carro anualmente em manutenção preventiva; regularmente preferia usar ônibus e metrô para me locomover na cidade, porque o trânsito é insuportável e o custo bem menor... Enfim, o carro é subutilizado e custava uma fortuna para manter.

Resumindo minha história com “o carro dos meus sonhos”, concluí que vivi uma sequência de ansiedade antes de comprá-lo, vergonha logo depois de adquiri-lo, vivi com ele por puro hábito por vários anos e senti um imenso alívio quando me vi livre dele.

Considero esse episódio do Land Rover Defender 110 na minha vida como um pequeno desvio do caminho correto. Não por causa do carro em si, mas devido ao equívoco que vivi em relação a ele. Acreditei, por conveniência ou preguiça de pensar, que estava conquistando algo e evoluindo de alguma forma ao associar a visão que tenho de mim mesmo a esse objeto, enquanto em realidade estava apenas me confundindo com ele. E esse equívoco vale também para a casa onde moro, as roupas que visto, o corpo que tenho e, em pior escala de confusão, às amizades que cultivo ou à companheira que tenho. Pessoas não são troféus. Objetos não nos definem.

Pode ser que amanhã eu compre outro carro semelhante já que esse veículo me foi extremamente útil, mas por enquanto preciso “me desintoxicar” e passar um bom tempo sem carro algum, desvinculando quem eu penso que sou daquilo que vejo refletido no espelho. Se meu objetivo é viver uma vida cada vez mais simples... Nada é mais simples que caminhar ou, no máximo, pedalar.


Guilherme Cavallari
www.kalapalo.com.br

 
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