Extremos
 
COLUNISTA ANDRÉ DIB
 
Dientes de Navarino: o trekking do fim do mundo
 
texto: Bruna Fávaro Silvio
fotos: André Dib
24 de fevereiro de 2016 - 16:16
 
Bruna Favaro durante o trekking do fim do mundo. Foto: André Dib
 
  André Dib  

Diferente de outros destinos clássicos da Patagônia, conhecer a Isla Navarino e seus “dientes” vai exigir mais planejamento, preparo e experiência daqueles que se propuserem a enfrentar esse que é um dos circuitos consolidados de trekking mais isolados e preservados da Cordilheira dos Andes.

Em dezembro de 2015, aproveitando uma passagem pela região da Patagônia, eu e o amigo fotógrafo André Dib, em busca de um trekking mais desafiador, escolhemos recorrer o chamado Cordón de los Dientes, na Isla Navarino. A experiência começa na pacata cidade de Puerto Williams, povoamento mais austral do planeta. Ocupada prioritariamente por militares da marinha chilena, seduz nossos olhares pela receptividade de seus habitantes, pelo comércio honesto e pela simplicidade que a vida afastada dos centros urbanos pode ter. Ali é possível encontrar algumas opções de hospedagem, restaurantes, pequenos mercados e lojas de equipamento para trekking.

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Técnico, isolado e imprevisível

Apesar de constar na literatura internacional desde 1992 e ter sido mapeado pelo governo chileno em 2001, o circuito recebe poucos visitantes mesmo durante a alta temporada, que vai de dezembro a março, ou seja, não é difícil percorrê-lo nos cinco dias previstos sem cruzar com qualquer outra pessoa pelo caminho. Tamanha exclusividade se explica pela dificuldade de acesso à Puerto Williams e, certamente, pela proximidade do Cabo Horn e do Mar de Drake, que torna o clima da região ainda mais duro e imprevisível do que se espera.

O que se destaca ao percorrer seus quase 50km, é a variedade de terrenos encontrados, que vão desde trilhas de terra bem marcadas, passando por trechos pantanosos, caminhos rochosos de grande inclinação, instabilidade , neve, turfa, lamaçal, bosque de lengas, até terminar em um emaranhado de caminhos feitos por animais da região. Tudo isso aliado a muito frio e ventos fortes em seus seis Pasos de montanha, sendo o mais alto e íngreme o Paso Virgínia, a 868m.

Pouco restou das marcações para orientação dos caminhantes feitas em 2001, no entanto é possível visualizar alguns totens e sinalizações mais recentes ao estilo francês (retângulos e setas azuis e vermelhas). Em condições climáticas favoráveis, a trilha mostra-se aparente em sua maior parte e o caminhante atento pode guiar-se sempre com o objetivo de dar a volta no conjunto principal de cerros que leva o nome de “Dientes de Navarino”. Nossa experiência, porém, foi em meio a muita neve em praticamente todos os dias, o que escondia o caminho mais adequado a ser tomado e tornava algumas passagens bastante perigosas, onde até mesmo o porte de um piolet teria sido adequado.

     
     

Paso a paso

O primeiro dia teve início a partir da própria cidade, pois foi necessário percorrer um caminho de 3km até chegarmos aos pés do Cerro Bandeira. Após a subida de pouco mais de 500m, tem-se uma vista incrível do Canal de Beagle. Uma opção de caminhada rápida na região é vir até esse ponto do percurso e voltar para a cidade. Vale a pena. A partir daí seguimos pela encosta do cerro à direita adentrando o Valle Róbalo até chegarmos no primeiro ponto de acampamento, um local sinalizado em frente à Laguna El Salto.

Após o amanhecer, começamos o percurso do segundo dia entendendo exatamente quais seriam os desafios dali para frente. O caminho inacreditavelmente seguia subindo um costão de neve assustador ao lado de uma cachoeira. Somado a isso e aos três pasos de montanha desse trecho, tivemos neve pelos joelhos durante todo o tempo, o que nos fez desistir, inclusive, de fazer um ataque ao Cerro Bettinelli e ao Lago Windhond, como havíamos planejado. É a montanha, às vezes dura e violenta, traçando o caminho por nós e nos colocando em nossos devidos lugares de expectadores de sua grandiosidade.

Saímos da Laguna Escondida prontos para mais um dia de neve pelos joelhos e um terreno de muitas rochas instáveis próximo às lagunas. Vencer o Paso Ventarón (696m) foi um grande desafio devido à inclinação do terreno e à quantidade de neve acumulada no trecho. Porém, a recompensa foi enorme: estávamos no ponto alto mais austral do trekking e, devido ao ótimo tempo, pudemos avistar com clareza ao sul o Cabo Horn e a Baía Windhond, à oeste todo o conjunto de cerros da região e ao norte o Canal de Beagle e a Cordilheira Darwin. Na lembrança, aquela sensação de vitória e de paz que só o contato com essa natureza mais selvagem proporciona. O dia mais deslumbrante do circuito se encerra aos pés do Cerro Clem, na magnífica Laguna Martillo.

A expectativa do quarto dia era subir e, pior, descer o Paso Virgínia (868m). O caminho até ele passou por diques engenhosamente construídos por castores que foram introduzidos na região, seguiu por uma subida íngreme de montanha, finalizando em um extenso platô, onde tivemos a oportunidade de preparar um delicioso almoço. A descida do Paso, a princípio assustadora, pode ser feita com cuidado e sem dificuldade “esquiando” com as botas pelas pedras soltas. Ao final, a real grande surpresa desse dia foi termos encontrado uma dupla de sul africanos que viriam a finalizar conosco o circuito.

O trekking é concluído com o dia de maior quilometragem. No entanto, o trecho é tranquilo por não apresentar dificuldade técnica, embora haja dificuldade de orientação, uma vez que não há mais trilha em grande parte do percurso devido à confusão causada por muitos caminhos marcados por vacas e bois que vão se misturando. Após descer os 640m de desnível e chegar na estrada, pode-se tentar uma carona ou percorrer a pé os 7km até o centro de Puerto Williams.

     
     

Experiência para poucos

Certamente o conjunto de variáveis desse trekking torna-o um troféu para poucos. Seus cerros, mais rudes que seus famosos irmãos Fitz Roy ou Torres de Paine, exigem montanhistas com olhos apurados e que busquem uma experiência de montanha autêntica, desafiadora e exclusiva. Aqui, como nas grandes montanhas, o autocontrole é um imperativo.

Como recompensa, você estará longe do fluxo de turistas, e poderá viver na Patagônia uma experiência similar à de percorrer os rincões isolados do nosso próprio país, em que a única pessoa que encontrar pelo caminho vai te oferecer não um rápido “olá”, mas uma boa conversa e uma caneca de café, como foi com nossos colegas sul africanos.

Chegar em Puerto Williams

Partindo de Punta Arenas de avião pela Viação DAP ou de barco pela empresa Transbordadora Austral Broom (TABSA).

Partindo de Ushuaia de barco pela empresa Ushuaia Boating ou contratando serviço particular de velejadores no porto.

O Mapa

 
Clique no mapa para ampliar, depois imprima e boa viagem! Arte: Elias Luiz | EXTREMOS
 

Hospedagem

O Hotel Akainij oferece ótimos quartos, café da manhã de primeira qualidade e uma experiência muito acolhedora.

Contato local

Antes de iniciar a trilha é necessário deixar seus dados na delegacia da região, bem como dar baixa ao finalizá-la. Também é possível obter informações sobre as condições de terreno e clima na época.

Carabineros de Chile: Calle Piloto Pardo, s/n (0056-61) 621035

 
A paisagem cênica de Dientes de Navarino. Foto: André Dib
 

Tracklog

Baixe o tracklog do circuito Dientes de Navarino.
- Arquivo GPX
- Google Earth (KML)

 
O tracklog do circuito Dientes de Navarino
 

Quem leva

A agência Aventura e Vida de Freddy Duclerc oferece o circuito Dentes de Navarino e outros roteiros na região da Patagônia.

Nota do editor

É um pouco difícil comprovar, mas é provável que Guilherme Cavallari e sua esposa, Adriana Braga, tenham sido os primeiros brasileiros a fazerem o circuito, em dezembro de 2008. "Esse foi o roteiro de trekking mais selvagem que fiz antes da TRANSPATAGÔNIA", disse Guilherme Cavallari. Entre outros roteiros, Dientes de Navarino foi o destaque do segundo guia de trekking que Guilherme Cavallari lançou pela sua editora Kalapalo. Clique e compre o guia.

Boas aventuras
Bruna Fávaro Silvio

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