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7 CUMES SABRINA PASCHOAL
 
Diário da Travessia da Serra Fina
 
Texto e fotos: Sabrina Paschoal
20 de junho de 2016 - 14:30
 
Sabrina Marmeroli durante a Travessia da Serra Fina.
 
  Tom Alves  

Eu e meu amigo saímos de São Paulo por volta das 20h30 do dia 25 de maio, e seguimos rumo à Passa Quatro, onde pernoitaríamos para começar a trilha na manhã seguinte. Chegamos tarde, por volta da 1h15 e, evidentemente, todos já estavam dormindo. Entramos no quarto coletivo da pousada e fomos dormir rapidamente, pois levantaríamos dentro de poucas horas.

Dia 26/05/2016

Levantamos às 6h, conhecemos os outros participantes e fomos tomar café. O guia local chegou e também tomou café conosco. Ao todo éramos 6 pessoas no grupo.

Saímos com a van, por volta das 7h e até chegar ao local do início da caminhada e começar a andar pela estradinha de terra e um pouco de lama, já eram 10h.

Saímos da Toca do Lobo, com bastante gente de outros grupos passando por nós. A caminhada se inicia cruzando um córrego, no qual pegamos água para 2 dias e já saí carregada com 5 litros. Com os 17 kg que já tinha na mochila, passei fácil dos 20 kg. Alguns deixaram para pegar o restante da água no último ponto que fica a 1h30 de caminhada e começamos uma subida através de uma bela crista.

Logo no começo já dá para perceber que a trilha não é para iniciantes e aqui sei que corro o risco de parecer que estou valorizando a empreitada, mas quem a conhece sabe do que estou falando. Nesse primeiro dia andamos 6,9 km com trechos de escalaminhada não muito grandes, mas bastante íngremes e que exigem muito fisicamente. Nesse dia temos um grande desnível, de mais ou menos 1.000 metros. Era um tal de segura no bambu, se agarra nas árvores, faz um movimento de 90 graus para subir alguns morros e com a mochila pesada nas costas, isso era uma exigência a mais para os joelhos e pernas. A terra negra já sujava as botas e consequentemente a calça. Sem falar nas muitas vezes em que escorregamos nessa lama tentando subir os morros e nos agarrando em algumas cordas pelo caminho.

Para mim, o primeiro dia é sempre difícil, porque o corpo está entendendo o que está acontecendo, está se habituando com aquele peso extra nas costas, e que peso, e por isso mesmo tende a ser mais sofrido.

     
     

Fizemos as habituais pausas para comer algo e procuramos nos hidratar o tempo todo, mas confesso que com a possibilidade de só ter água no dia seguinte no início da tarde e o medo de ficar sem, dei uma segurada na hidratação, o que não é bom.

Depois de 5 horas chegamos ao nosso ponto de acampamento, uma clareira que chamam de “ombro”, uns 30 minutos antes do destino final do dia que era o Capim Amarelo. O guia achou melhor ficarmos ali porque pelo número de pessoas na trilha, com certeza não encontraríamos mais lugar para acampar. Começamos a montar as barracas, desmontar as mochilas e preparar alguma coisa para comer.

Fomos agraciados com um pôr do sol digno de ficar marcado em nossas memórias, sendo “engolido” pelo horizonte e pelas nuvens.

Nisso foram chegando outras pessoas que resolveram fazer o mesmo que a gente e foram parando nesse ponto, que não é muito grande. No final, eram 9 barracas e mais um maluco que fez bivaque no saco de dormir, sem barraca, pois não havia mais lugar. Nós só o vimos na manhã seguinte e nem posso imaginar o frio que ele passou. Disse que em um momento durante a noite não estava mais sentindo os pés.

Senti um pouco de frio logo que entrei no saco de dormir, mas foi passando aos poucos. A temperatura ficou em torno de uns 6 graus de madrugada.

Dia 27/05/2016

Levantamos às 6h e começamos, aos poucos, a fazer o café, arrumar a mochila, desmontar barraca e estávamos prontos para começar a trilha, às 8h15.

Subir até o topo do Capim Amarelo não é fácil. É uma subida muito íngreme, difícil e no meio dos bambus que fazem a mochila enroscar o tempo todo. Foi cansativo, porém rápido. Chegamos ao topo, tiramos fotos, assinamos o livro, vimos algumas pessoas ainda nas barracas e realmente constatamos que foi melhor termos ficado mais abaixo, pois o local estava lotado.

Descemos do Capim Amarelo e dá-lhe joelhos. No meu caso, que tenho problema nos dois, nem preciso dizer que o desgaste é grande, mas quando não há remédio, bora andar. E assim foi entre subidas e descidas, passando pelos bambus que enroscam em tudo. O que chama a atenção nessa travessia é a diversidade de vegetação. Começa-se no meio de uma espécie de floresta, depois o caminho abre com vegetação baixa, fecha de novo, entram os bambus, vem a mata, o onipresente capim de anta e assim vai numa sucessão de diferentes ambientes.

O clima estava ótimo, com sol, só fazendo um friozinho pela manhã, mas já saíamos sem os anoraks dos acampamentos, porque nesse sobe e desce o calor chega rapidinho.

Depois que saímos da mata, chegamos ao Maracanã, que é um dos pontos de camping. Seguimos pela trilha com outros trechos de escalaminhada, mas com uma vista fantástica do Capim Amarelo e quanto mais nos afastávamos dele, mais parecia impossível que havíamos passado por lá há poucas horas, de tão longe que estava. Continuamos caminhando ora pela crista da serra, ora descendo pedras e depois de pouco mais de 8h de caminhada, chegamos numa espécie de vale, chamado de Asa, ao lado do ponto de água, a Cachoeira Vermelha e abaixo da Pedra da Mina, onde resolvemos montar acampamento pelo mesmo motivo do dia anterior, ou seja, não haveria lugar suficiente no cume da Pedra.

Para mim foi ótimo, porque já estava cansada e querendo parar mesmo e tirar a mochila enorme e pesada. Montamos as barracas, nos limpamos com lenços umedecidos e ficamos tirando fotos e conversando sentados nas pedras. Presenciamos mais um céu de deixar qualquer um boquiaberto. Aos poucos começamos a preparar o jantar, fomos pegar água na cachoeira, mas o gosto dela não é muito bom, é ferruginoso, por isso o nome de Cachoeira Vermelha.

     
     

O outro grupo que havia pernoitado conosco no acampamento anterior também resolveu ficar conosco e assim a “vila” foi aumentando. Ela começou com as nossas 4 barracas e de repente já eram 10.

Comemos, conversamos e essa noite o clima estava mais agradável, menos frio. Fomos dormir cedo, pois estávamos cansados. Por volta das 20h já estava no meu saco de dormir. Quanto mais gente num acampamento, mais barulhos durante a madrugada. Roncos em diversos ritmos, alturas e melodias nos embalavam o sono.

Dia 28/05/2016

Levantamos às 5h e começamos o ritual de café, montar mochila, desmontar barraca, arrumar tudo e partimos às 6h40. Já começamos a subir pelas rochas, numa inclinação não muito íngreme, porém constante para o topo da Pedra da Mina.

Em pouco tempo chegamos ao cume da 4ª montanha mais alta do Brasil e o visual de lá é simplesmente maravilhoso. São 360º de beleza estonteante, vales lindos, os outros cumes maravilhosos e passamos um bom tempo nos divertindo, tirando fotos, comendo e nos deliciando com as imagens. Assinamos o livro e começamos a forte descida rumo ao Vale do Ruah. Nessa altura, as unhas dos dedões já davam sinal de fadiga, de tanto que eram batidas na ponta das botas.

Chegando ao vale, começamos a quase sumir no meio daquele matagal imenso dos capins de anta que quase nos cobriam completamente e batiam no rosto, entravam no olho e não conseguíamos sequer enxergar o chão. Íamos abrindo caminho com os bastões de caminhada. Além dessa peculiaridade do caminho, metemos as botas no lodaçal de lama preta que estava por toda parte e entranhava nelas e na calça. A cada afundada, ríamos e falávamos uma frase num português castiço que convém evitar aqui, se é que me entendem.

 
A caminho do Pico dos Três Estados.
 

Chegamos à cachoeira que é o último ponto de água da trilha e toda a alegria de estarmos leves por conta do término dos nossos reservatórios se foi e voltamos a ficar pesados com todos aqueles 6 litros de água que pegamos. Havia muita gente tomando banho nesse rio e o dia estava lindo, com sol, mas a água estava geladíssima.

Saímos de lá e começamos a subir mais pedra com as botas sujas da lama preta, o que facilita e muito escorregar nas pedras, já que a aderência se perde. Os famosos bambus cortam as mãos, entram nos olhos, prendem nas mochilas, mas não há o que fazer. Subimos até o cume do Cupim de Boi, onde temos um visual lindíssimo, mas a essa altura o sol estava nos matando. O dia foi muito ensolarado e quentíssimo. Nessa altura, na crista do morro, já estava cansada de tanto sobe e desce embaixo daquele sol.

Paramos muito rápido só para hidratar e comer algo rapidinho, pois resolvemos acampar numa clareira no sopé do Pico dos Três Estados. Fizemos uma descida puxada até o local do acampamento e chegamos lá às 15h15, depois de 8h40 de caminhada.

Montamos acampamento e novamente os nossos amigos dos dois acampamentos anteriores chegaram e ficaram radiantes por nos encontrarem. Eles faziam o mesmo percurso que nós todos os dias, porque confiavam nas dicas do nosso guia. Novamente nosso acampamento foi crescendo e como seria a última noite, fizemos um jantar coletivo, onde cada um deu alguma coisa para se livrar do peso da comida e ficamos por horas conversando, comendo e rindo.

Fomos dormir cedo.

Dia 29/05/2016

Acordamos às 4h30, pois esse seria um dia muito longo. Começamos a caminhada às 5h30, ainda no escuro, com nossas lanternas de cabeça ligadas. É uma subida íngreme, para variar, mas nada que já não estivéssemos acostumados. Fizemos algumas escalaminhadas e chegamos à crista da montanha com o sol tingindo de laranja e azul o escuro da noite que estava indo.

Chegamos ao cume do Pico dos Três Estados, que estava lotado, cheio de barracas nas clareiras onde o capim de anta era amassado para que elas fossem armadas.

 
Sabrina Marmeroli no Pico dos Três Estados.
 

Lá encontramos um triângulo de metal com o nome dos Três Estados que dão nome ao pico (Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro). Tiramos muitas fotos e ficamos nos deliciando com o “mar” de nuvens e o sol ainda baixo, nascendo no horizonte. As imagens eram lindas.

Descemos rumo ao Alto dos Ivos. É mais uma escalaminhada, uma subida puxada e forte pelas pedras onde todos chegam ao cume resfolegando. Chegando lá paramos para hidratar, comer algo e descansar no solzinho gostoso que fazia. Atacamos o restante de comida que ainda havia nas mochilas e descansamos por volta de 30 minutos. De lá se tem uma visão linda do Agulhas Negras.

Depois do descanso começamos a descida que seria longa. Com a entrada na nuvem, já que até então estávamos quase sempre acima delas, o frio chegou e tivemos que vestir os casacos. Passamos pelos capins, pedras, muito bambu e logo entramos numa espécie de mata úmida, bastante fechada e com mais bambus, que a essa altura estavam me irritando bastante. Como a trilha estava bem mais fechada, eles prendiam a mochila o tempo todo, nos obrigando a voltar para desenroscar e passar por alguns quase de joelhos...aqueles que já estavam praticamente inutilizados.

Quase entrei em briga corporal com um bambu que enroscou no alto da mochila e não soltava por nada. Xinguei, puxei, arranquei e segui caminho. Nessa mata a trilha é plana, o que facilita muito, mas é longa e dali até o final da trilha no sítio do Pierre, que a gente se engana achando que é o fim da jornada, o caminho é longo. Chegando ao sítio, prepare os pés, que a esta altura estão pegando fogo dentro das botas e ande mais uma hora até a rodovia onde as vans nos pegam, mas aí já é numa estrada de terra e depois pedra.

Enfim, depois de 10h de caminhada, a travessia chegou ao fim. Lá nos abraçamos, encontramos os outros amigos dos dias anteriores, tiramos fotos e partimos para mais 40 minutos de estrada até Passa Quatro.

Normalmente sou uma pessoa que gosta de planejar as coisas, conhecer o que estou fazendo, mas também confesso uma quedazinha por decisões repentinas e assim foi que decidi numa sexta-feira que partiria na quarta-feira seguinte para a Serra Fina. Nada muito preocupante porque costumo treinar e me manter ativa dentro das possibilidades e já estava com saudade do cheiro do mato, do vento batendo no rosto, de me embrenhar numa trilha, de ver as nuvens do alto das montanhas e da sensação de liberdade que me encanta desde sempre.

Se eu disser que achei a travessia fácil, vão dizer que estou sendo pernóstica. Se disser que achei muito difícil, vão dizer que estou valorizando, então como o caminho certo para o fracasso é tentar agradar a todos, vou dizer o que realmente senti e as minhas impressões.

Achei a travessia linda, com uma vegetação interessantíssima e irritante em alguns momentos, uma variedade imensa de paisagens e desafios diferentes a cada dia. Agora vou falar uma coisa: sofri em muitos momentos, escorreguei em muitos deles, caí de bunda e parecia uma tartaruga tentando levantar com aquele casco de 20kg nas costas, passei um pouco de frio, calor e me encantei com as paisagens lindas do alto dos vários cumes pelos quais passamos.

     
     

As nuvens dançavam num céu multicolorido enchendo os olhos de beleza e talvez isso ajudasse a mascarar a dureza das subidas, a irritação dos bambus no rosto, o cansaço depois de horas e horas sob o sol e sobre as pedras.

Ela é desafiadora, intensa, dura, mas linda de ver e de viver. Travessia Serra Fina, missão cumprida.

Obrigada,
Sabrina Paschoal

 
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